Resenha do livro "Teologia Arminiana: Mitos e Realidades", de Roger Olson, por Thiago Velozo Titillo

30/01/2014 17:24
OLSON, Roger E. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Tradução  Wellington Carvalho Mariano. São Paulo: Editora Reflexão, 2013.

 

Por Thiago Velozo Titillo[1]

 

Roger E. Olson – Ph. D. pela Rice University – é professor de teologia no George W. Truett Theological Seminary da Baylor University em Waco, Texas. Tornou-se popular no Brasil após a publicação da sua consagrada História da Teologia Cristã: 2000 anos de tradições e reformas, publicada pela Editora Vida. Em nosso vernáculo, também se encontram publicadas as seguintes obras de sua autoria: História das controvérsias na Teologia Cristã: 2000 anos de unidade e diversidade (Editora Vida), Iniciação à Teologia, em coautoria com Stanley J. Grenz (Editora Vida), A teologia do século 20: Deus e o mundo numa era de transição, também em coautoria com Stanley Grenz (Editora Cultura cristã) e, mais recentemente, Contra o calvinismo (Editora Reflexão).

 

Tal publicação é oportuna a fim de esclarecer o que verdadeiramente ensina a teologia arminiana, tão comumente caricaturada por seus oponentes. O tom conciliatório de Olson ajuda a formar um diálogo saudável.

 

Roger Olson busca desconstruir 10 mitos comuns acerca do arminianismo através da informação. Ei-los: 1) A Teologia Arminiana é oposta à Teologia reformada-calvinista; 2) É possível mesclar calvinismo e arminianismo; 3) O arminianismo não é uma opção evangélica ortodoxa; 4) O arminianismo tem como princípio fundamental o livre-arbítrio; 5) O arminianismo nega a soberania de Deus; 6) O arminianismo é uma teologia antropocêntrica; 7) O arminianismo não é uma Teologia da Graça; 8) O arminianismo nega a predestinação; 9) O arminianismo nega a justificação pela graça através da fé somente; 10) Todos os arminianos creem na teoria governamental da expiação (Hugo Grócio).

 

O primeiro mito é desconstruído à medida que é demonstrado que Armínio era reformado em sua teologia, divergindo apenas da ideia de que Deus predestinou à queda (o mal e o pecado) e elegeu incondicionalmente uma parcela da humanidade para a salvação, ignorando os demais. Armínio enfatizou a glória de Deus e abraçou a Teologia da Aliança (ou Federal). Entre os pontos comuns entre a teologia arminiana e calvinista, encontra-se: 1) a depravação total; 2) a necessidade absoluta da graça; 3) a providência divina (com a diferença de não ser exaustiva e não ter relação positiva com o mal); 4) a inspiração das Escrituras; 5) a cristologia; 6) a Trindade; 7) a justificação; etc. Pode-se afirmar que uma teologia que afirma tais pontos esteja em total oposição ao calvinismo reformado? É claro que há pontos irreconciliáveis, mas no geral, tais teologias não são opostas, mesmo que não sejam complementares. Pelo contrário, guardam muitas semelhanças. Afirmar, como fazem a maioria dos apologistas calvinistas que o arminianismo é uma heresia, e compará-lo ao semipelagianismo é, no mínimo, desonestidade intelectual.

 

O segundo mito nega a possibilidade de uma teologia “calminiana”, justamente por ser impossível afirmar uma regeneração monergista e sinergista ao mesmo tempo e no mesmo sentido. É verdade que tanto os arminianos quanto os calvinistas ensinam a predestinação e o livre-arbítrio – contrário ao conceito popular de que o calvinismo ensina a predestinação e nega o livre-arbítrio, e o arminianismo ensina o livre-arbítrio e nega a predestinação –, mas interpretam estes dois conceitos de maneiras diferentes. Os calvinistas ensinam a predestinação absoluta juntamente com a ideia de livre-arbítrio compatibilista (uma forma de coaduná-lo com o determinismo divino), enquanto os arminianos ensinam a predestinação (no sentido de eleição soteriológica) conforme a presciência divina juntamente com a ideia de arbítrio liberto pela graça preveniente, tornando-se livre-arbítrio libertário, isto é, capaz de fazer escolha diferente e/ou contrária.

 

O terceiro mito é também desvendado. Armínio jamais negou os pontos basilares da fé cristã ortodoxa. Que alguns arminianos posteriores tenham se enveredado pelo semipelagianismo (ou mesmo o pelagianismo), como o remonstrante Limborch, e posteriormente, o avivalista Finney, isso não se nega. Mas tais não representam o arminianismo clássico lançado por Armínio, seguido por Episcópio, recuperado por John Wesley e seguido pela maioria dos metodistas posteriores. Igualmente injusta é a ideia de que o arminianismo conduz ao deísmo e à teologia liberal. Se isso aconteceu com arminianos, não se pode esquecer que Schleiemarcher, pai da teologia liberal, era calvinista. Quanto à acusação de que Armínio fosse sociniano quanto à sua cristologia, basta ler suas obras para ver que ele estava em pleno acordo com as definições cristológicas do Concílio Calcedônia (451).

 

Quanto ao quarto mito, os próprios textos de Armínio dão conta de que o princípio fundamental de sua teologia não é o livre-arbítrio humano. Este é apenas uma consequência do fundamento de sua teologia, a saber, o caráter justo e amável de Deus, que exige uma resposta livre do ser humano a fim de que haja um relacionamento genuíno entre criatura e Criador.

 

Sobre o quinto mito, a teologia de Armínio não nega a soberania divina, nega apenas que tal soberania seja exaustiva em relação a todos os acontecimentos da história, incluindo o mal e a Queda (pecado), pois desta forma, Deus, inevitavelmente, seria o autor do pecado. Ao determinar criar seres livres, o mal se torna verdadeiramente possível, mas Deus não o decreta ativamente. Tal decreto deve ser entendido apenas como permissivo. É claro que Deus tem todo o poder para operar sua vontade antecedente (perfeita) em toda sua criação, mas por valorizar um relacionamento genuíno com suas criaturas não faz uso de poder coercitivo.

 

Um Imperador não deve deixar de ser considerado soberano somente porque não determina exaustivamente as decisões de seus súditos. Claro que toda analogia é imperfeita. Mas imagine outra: um navio com destino a um determinado porto. As pessoas dentro do navio gozam de certa liberdade, mas nada que possa impedir o navio de chegar ao seu destino. Assim é a história governada por Deus: chegará ao seu clímax final. Como diz Olson, Deus é soberano sobre sua soberania, ou seja, Ele pode limitar seu poder sem se tornar um “deus menor”. Nas palavras de Tozer, “um Deus soberano não teme conceder liberdade à sua criação”.

 

Quanto ao sexto mito, a verdade é que o arminianismo confessa a completa e total depravação do homem, de maneira que sua liberdade para escolher o bem espiritual está totalmente arruinada. A vontade humana é totalmente escravizada pelo pecado. As acusações de semipelagianismo[2] é uma falsificação da teologia de Jacó Armínio. Pode ser que tal acusação se baseie na leitura de Limborch, desertor do arminianismo clássico. Mas dificilmente os teólogos calvinistas que leram Limborch não teriam acesso aos escritos de Armínio. Embora a ignorância possa explicar em parte a disseminação da caricatura arminiana, não se pode ignorar uma campanha deliberada para distorcer o pensamento do teólogo holandês, como já acontecia em sua época, quando Francisco Gomaro tomou à frente no projeto de caluniá-lo. A verdade é que a teologia arminiana não é otimista quanto ao homem, mas como o próprio Olson diz, é uma teologia otimista em relação à graça.

 

O sétimo mito afirma que a Teologia Arminiana não é uma Teologia da Graça. Isso porque não defende a graça irresistível. Mas impor ao conceito de “graça” a ideia de irresistibilidade é querer monopolizar seu significado. Para Armínio (e os arminianos clássicos), a salvação do homem depende necessariamente da graça de Deus. O homem é incapaz de salvar-se sem o auxílio da graça. A graça preveniente (graça que vem antes) é necessária para libertar a vontade e capacitar o homem a responder à oferta salvífica do Evangelho. Em certo sentido, o primeiro raiar dessa graça é irresistível, pois todos a recebem.[3] Num segundo momento essa graça torna-se resistível, pois com o livre-arbítrio liberto, o homem pode aceitá-la pela fé – que é dom de Deus, logo não se trata de uma obra meritória –, ou rejeitá-la. Assim, em toda a salvação, a glória é somente de Deus, pois mesmo o ato de aceitar tal graça não se trata de uma aceitação ativa, mas passiva, um simples deixar sem resistência à atuação de Deus.

 

Ao combater o oitavo mito, Olson demonstra que a teologia de Armínio e de seus seguidores não nega a predestinação, embora a entenda de forma diferente do calvinismo. Isso também se aplica aos calvinistas: eles não negam o livre-arbítrio (embora alguns se sintam desconfortáveis com o termo), mas interpretam-no de forma diferente. Armínio, inclusive, defendeu uma predestinação que mais honra mais a pessoa de Jesus Cristo do que a predestinação calvinista. Na ordem dos decretos, conforme a teologia calvinista, o decreto primário de Deus[4] é salvar uns e condenar outros (supralapsarianismo), ou: 1º) criar; 2º) permitir a Queda; 3º) eleger uns, ignorar o restante (infralapsarianismo).[5] Para Armínio, o primeiro e mais importante decreto divino foi estabelecer Jesus Cristo como salvador dos pecadores. Na ordem dos decretos conforme o calvinismo “Jesus Cristo parece aparecer como um decreto posterior ao decreto primário de Deus de salvar alguns e condenar outros” (p. 237). O segundo decreto conforme Armínio é aquele que Deus decretou receber em favor os que se arrependem e creem em Cristo. Nada mais cristocêntrico. Quanto à eleição, Armínio entendeu-a condicional à fé, sendo que Deus elegeu aqueles que Ele anteviu que não rejeitariam sua graça – preveniente e cooperante. Negou a predestinação para o pecado e o mal, mas não a predestinação.

 

O nono mito é uma tentativa de desqualificar Armínio dentro da tradição reformada, afirmando que ele negava a doutrina da justificação pela fé, artigo pelo qual, segundo Lutero, “a igreja permanece de pé ou cai”. Àqueles que negam a Armínio a justificação pela graça somente através da fé deveriam ler urgentemente suas obras. Ele não apenas defende que a justificação se dá através da fé, mas afirma com os demais reformadores que a justiça de Cristo é imputada sobre o crente quando este confia em Jesus para a salvação. Poucos arminianos creem que a própria fé é imputada como justiça (a fé como base da justificação, e não a justiça de Cristo), de maneira que a fé possa ser entendida como resposta humana e base para a justificação, tornando a justificação fruto de obra humana (nesse caso, trata-se de um sério desvio teológico). Há ainda arminianos que creem que por causa (instrumental, e não eficaz) da fé, o crente é considerado justo (sem pecado), mas tal justiça não é a justiça de Cristo imputada. Mas desvios ocorrem dentro de qualquer sistema doutrinário.[6] Contudo, Armínio e boa parte dos seus seguidores defendem que a justiça de Cristo é imputada ao crente pela fé em Jesus. Essa também é a opinião de Olson.

 

O décimo mito imputa a todo arminiano a teoria de Grócio sobre a expiação. Armínio e Wesley não a defenderam. Pelo contrário, criam na substituição penal. Trata-se de mais uma manifestação de ignorância em relação à teologia de Armínio, ou uma tentativa consciente de atribuir a ele um erro doutrinário que lance sombra sobre sua ortodoxia.

 

Antes de recomendar a obra, faz-se necessário uma observação. Preocupou-me a opinião do Olson, um teólogo conservador, acerca do teísmo aberto. Ele pareceu flertar com essa teologia: “Eu considero o teísmo aberto uma opção evangélica legítima e arminiana, mesmo que eu ainda não a tenha adotado como minha própria perspectiva” (nota de rodapé 65, pp. 256-257 – ênfase acrescentada). O advérbio de tempo “ainda” causou-me estranheza. Na p. 258, ele diz: “Por sentir o peso da crítica do teísmo aberto feita ao arminianismo clássico, eu permaneço um arminiano clássico esperando ajudar a aliviar o paradoxo da filosofia” (nota de rodapé 67).

 

Na verdade, o “peso da crítica do teísmo aberto feita ao arminianismo clássico” está longe de ser pesado. O argumento é que se Deus, de fato, conhece exaustivamente o futuro (presciência; onisciência) todas as ações livres que acontecerão, acontecerão da forma como Deus viu, não podendo acontecer de forma contrária, o que segundo o teísmo aberto, faz com que tais decisões não sejam livres. Mas será que essa lógica é irresistível? Não parece. O fato de Deus conhecer infalivelmente que X fará A e não B, não indica que Deus assim determinou, mas que Deus conheceu eternamente a ação livre de X. Agostinho já havia refutado tal ideia em seu diálogo com Evódio – O livre-arbítrio. Um dos maiores filósofos cristãos da atualidade, Alvin Plantinga, também não vê nenhuma contradição entre o livre-arbítrio libertário e a onisciência absoluta de Deus.

 

Por fim, a presente obra é esclarecedora, escrita de forma clara, didática e bem documentada. Preenche uma lacuna no Brasil, onde ainda a teologia calvinista domina o mercado editorial. Por isso, Teologia Arminiana: mistos e realidades é leitura obrigatória para todos os interessados na verdadeira teologia de Jacó Armínio e seus seguidores.
 

Fonte: Azusa Revista de Estudos Pentecostais Volume V – Número 2, 2014, pp. 211-218.

https://www.azusa.ceeduc.edu.br/index.php/azusa/article/view/83

 



[1] Pastor Auxiliar na Primeira Igreja Batista em Botafogo, Rio de Janeiro, onde atualmente exerce a função de Ministro de Casais. Licenciado em Letras – Português e Literaturas de Língua Portuguesa – pela Universidade Estácio de Sá. Graduado em Teologia pelo Seminário Teológico Betel, no Rio de Janeiro. Pós-Graduando em Teologia Bíblica e Sistemática-Pastoral pela Faculdade Batista do Rio de Janeiro. Estuda grego na Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro. É professor da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro (SEEDUC), da Faculdade de Teologia Wittenberg, e do Colégio Souza Marques. Autor do livro A gênese da predestinação na história da Teologia Cristã. Uma análise do pensamento agostiniano sobre o pecado e a graça, publicado pela Fonte Editorial (2014). Contato por e-mail: thiago_titillo@yahoo.com.br.

[2] O semipelagianismo é o sistema doutrinário que buscou encontrar uma via média entre o rígido monergismo agostiniano e os excessos da doutrina de Pelágio. Este partido surgiu no sul da França e teve como seu principal expoente o abade do monastério de Marselha, João Cassiano (c. 360-c. 435). Sproul diz que “ele é tão identificado com o semipelagianismo que este, algumas vezes, é chamado de cassianismo” (SPROUL, R. C. Sola Gratia. A Controvérsia sobre o livre-arbítrio na História. Tradução Mauro Meister. São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 72). Dois outros monges – Vicente de Lérins e Fausto de Riez – se ajuntaram a Cassiano a fim de combater a inovação monergista de Agostinho. Defendiam que a Queda prejudicou a vontade humana, mas não eliminou completamente seu livre-arbítrio. Desta forma, restou ao homem decaído uma centelha de livre-arbítrio da vontade, capaz inclusive de achegar-se a Deus antes mesmo de Sua graça preveni-lo.

[3] Para alguns arminianos todos a recebem automaticamente em função da expiação de Cristo, como defendeu John Wesley; para outros, tal graça só é recebida na medida em que o pecador tem contato com a Palavra proclamada, o que exclui aqueles que não tiveram contato com o Evangelho, como pensava Episcópio (p. 216).

[4] Tem-se em vista aqui a ordem lógica dos decretos, e não cronológica, pois Deus sendo eterno, não experimenta sucessão de momentos.

[5] Todavia, mesmo que a reprovação seja vista apenas como “ignorar” – decreto de omissão –, isso não diminui a dupla-predestinação, pois a eleição incondicional exige uma reprovação incondicional.

[6] Os próprios teólogos calvinistas não são unânimes em relação a muitas de suas doutrinas: supralapsarianos discordam dos infralapsarianos; calvinistas de cinco pontos discordam dos calvinistas de quatro pontos (amyraldianistas), dentre outras diferenças internas.