Sobre Atos 13.48, por Thiago Titillo

24/01/2017 02:14

A quarta passagem se encontra no disputado versículo de Atos 13.48: “Os gentios, ouvindo isto, regozijavam-se e glorificavam a palavra do Senhor, e creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna”. Arthur Pink afirma sobre este versículo:

Todas as artimanhas da engenhosidade humana têm sido empregadas para obscurecer o significado deste versículo e para explicar de outro modo o sentido óbvio de suas palavras; mas todas as tentativas têm sido em vão; [...]. Aprendemos aqui quatro coisas: Primeira, que o ato de crer é a consequência e não a causa do decreto divino. Segunda, que somente um número limitado foi destinado ‘para a vida eterna’; porque se todos os homens, sem exceção, fossem assim destinados por Deus, então as palavras ‘todos os que’ formariam uma qualificação sem qualquer significado. Terceira, que esse ‘destino’ pronunciado por Deus não se refere a meros privilégios externos, mas à ‘vida eterna’ não a algum serviço, mas à salvação. Quarta, que ‘todos os que’ – e nenhum a menos – são destinados por Deus para a vida eterna certamente crerão.[1]

A interpretação dessa passagem depende do significado atribuído à palavra tetagmenoi, particípio passivo do verbo tassõ. O verbo tassõ tem um campo semântico amplo. Em seu verbete, no Dicionário Teológico do Novo Testamento, Delling diz: “Essa palavra significa ‘designar’, ‘ordenar’, com nuanças tais como ‘organizar’, ‘determinar’, ‘pôr no lugar’, ‘estabelecer’ e, na voz média, ‘fixar por si mesmo’”.[2]

Se o verbo tassõ for considerado voz média, deve ser entendido como “fixar por si mesmo”, “dispor-se”, “ordenar-se”, como Rotherham traduz: “E aqueles das nações, ao ouvir isso, começaram a se regozijar e a glorificar a Deus, e eles creram – tantos quantos se haviam tornado dispostos para a vida duradoura”.[3] A expressão “se haviam tornado dispostos” exclui uma interferência externa sobre a vontade humana. O fato da palavra ser absoluta, sem indicar quaisquer agentes em particular, favorece essa tradução.

Ferreira e Myatt tentam descartar essa possibilidade: “O argumento de alguns arminianos de que em τεταγμένοι (tetagmenoi) o particípio passivo do verbo τάσσω (tassõ [designar]) deve ser voz média (“os que se designaram”) não é coerente com o contexto e também seria redundante”.[4] Mas muitos outros discordam dessa afirmação. “Citando exemplos, Bloomfield afirma (assim como outros) que a voz passiva de tasso frequentemente transmite o sentido médio [...]”.[5]

“Crisóstomo vai além ao dizer que a expressão tetagmenoi é empregada para indicar que o assunto não é uma questão de necessidade, nem daquilo que é compulsório. E, assim, longe de favorecer o sistema de um decreto absoluto, as palavras levariam à conclusão oposta, de que o Criador, embora ‘prendendo a natureza ao destino, deixou livre a vontade humana’”.[6]

Já vimos que o testemunho de Crisóstomo não pode ser ignorado. Os pais gregos não viram nessa passagem qualquer sugestão de um decreto absoluto daqueles que deveriam ser salvos. Henry Alford menciona o questionamento que Wordsworth faz da relação entre a Vulgata e a disseminação do pensamento determinista no cristianismo ocidental, e salienta que os pais orientais, versados na língua do Novo Testamento, rejeitavam a interpretação predestinista do texto proposta pelos pais da igreja ocidental:

Wordsworth também observa que seria interessante inquirir qual influência tais construções como esta de praeordinati na versão Vulgata tiveram sobre as mentes de homens como Santo Agostinho e seus seguidores na Igreja Ocidental, ao tratar das grandes questões do livre-arbítrio, da eleição, da reprovação, e da perseverança final: e alguns escritores das igrejas reformadas que, embora rejeitando a autoridade daquela versão, ainda assim foram influenciados por ela, afastando-se do sentido original aqui e no capítulo 2.47. A tendência dos Pais orientais, que liam o original grego, foi, ele destaca, para uma direção diferente daquela da escola ocidental.[7] (Ênfase minha)

            Shank observa que a Vulgata insere o prefixo pre à palavra ordinati, quando no texto grego tetagmenoi não vem acompanhado do prefixo pro: tassõ, e não protassõ. Ele observa ainda que a agência humana declarada no versículo 46 contraria a ideia de que Lucas tivesse em mente a agência divina no verso 48.[8]

John William McGarvey diz em seu New Commentary on Acts of Apostles:

Na passagem diante de nós o contexto não apresenta nenhuma alusão a algo feito por Deus para uma parte da audiência, e não feito para a outra, ou a algum propósito firmado a respeito de uma e não de outra, mas fala de dois estados de mente contrastados entre o povo, e dois consequentes cursos de conduta. Dos judeus presentes é dito, em primeiro lugar, que eles estavam cheios de inveja; em segundo lugar, que eles estavam contradizendo o que Paulo falava, e blasfemavam; em terceiro lugar, que eles julgaram a si mesmos indignos da vida eterna. Em contraste com estes, os gentios, em primeiro lugar, estavam alegres; em segundo lugar, eles glorificavam a palavra de Deus; em terceiro lugar, eles estavam τεταγμενοι para a vida eterna. Agora, qual dos significados específicos da palavra grega iremos aqui inserir? Ela se encontra contrastada com o ato mental dos judeus ao julgarem-se indignos da vida eterna, e a lei da antítese exige que a entendemos de algum ato mental de natureza oposta. A versão, estavam determinados, ou estavam dispostos para a vida eterna, é a única admitida pelo caso. O verbo está na voz passiva e no tempo passado, e, portanto, descreve um estado mental produzido antes do momento do qual o escritor está falando. Em outras palavras, a afirmação que “creram todos quantos estavam ordenados para a vida eterna” implica que eles foram levados a esta determinação antes que creram. Em algum momento anterior em sua história, estes gentios, que nasceram e foram educados no paganismo, ficaram sabendo da vida eterna como ela era ensinada pelos judeus. Sob o ensino dos judeus ou sob o ensino de Paulo desde sua chegada em Antioquia, ou sob ambos, eles foram levados de um estado de confusão mental sobre este assunto transcendentalmente importante a uma determinação para obter a vida eterna se possível.[9]

A leitura atenta do capítulo 13 derrama bastante luz sobre o uso do verbo em questão. Paulo e Barnabé chegaram a Antioquia da Psídia num sábado, dirigindo-se à sinagoga local (v. 14). Ali, Paulo dirigiu seu testemunho aos “varões israelitas” e a “vós outros que também temeis a Deus” (v. 16; cf. v. 26), que são os gentios. O texto bíblico diz que, após uma breve apresentação do evangelho, não apenas “rogaram-lhes que, no sábado seguinte, lhes falassem estas mesmas palavras” (v. 42), mas “muitos dos judeus e dos prosélitos piedosos seguiram Paulo e Barnabé” (v. 43). Não há qualquer afirmação de que essas pessoas se converteram e foram salvas naquela ocasião, mas ao menos pareciam dispostas a ouvir mais do evangelho de Cristo.[10] Vendo a boa disposição deles, Paulo e Barnabé “os persuadiram a perseverar na graça de Deus” (v. 43).

No sábado seguinte, os dois missionários retornaram à sinagoga para pregar o evangelho, e uma multidão foi ouvi-los (v. 44). Isso gerou inveja nos judeus, que passaram a contradizer Paulo com blasfêmias (v. 45). Diante dessa rejeição, eles se dirigiram para o outro grupo, formado por gentios tementes a Deus, que já os seguiam desde o sábado anterior (v. 46). A disposição de coração destes era radicalmente diferente daquela apresentada pelos judeus. Eles receberam a mensagem com alegria e creram, porque seus corações já estavam dispostos desde primeira pregação de Paulo naquela sinagoga. Assim, o uso de tetagmenoi quando interpretado à luz do contexto, favorece a interpretação arminiana, ao contrário do que sugerem Ferreira e Myatt.

Por fim, o teólogo calvinista J. O. Buswell nega que o versículo se refira à predestinação para a salvação:

Na verdade, as palavras de Atos 13.48, 49 não são necessariamente qualquer referência à doutrina do decreto eterno de Deus sobre a eleição. O particípio passivo tetagmenoi pode simplesmente significar ‘pronto’, e podemos muito bem ler: ‘Todos os que foram preparados para a vida eterna, creram’.[11]

 
 
Fonte: TITILLO, Thiago. Eleição Condicional. 1. ed. São Paulo: Reflexão, 2015, pp. 71-75.

[1] PINK, 2002, pp. 53-54.

[2] KITTEL; FRIEDRICH, 2013b, p. 548.

[3] ROTHERHAM apud SHANK, op. cit., p. 194.

[4] FERREIRA; MYATT, op. cit., p. 750, nota de rodapé 152.

[5] SHANK, op. cit., p. 194.

[6] BLOOMFIELD apud SHANK, ibid., p. 195.

[7] ALFORD apud SHANK, ibid., p. 192.

[8] SHANK, Ibid, pp. 192-193.

[9] McGARVEY, John William. At 13.48. Tradução: Cloves Rocha dos Santos. Disponível em: <www.arminianismo.com> Acesso em 25 de agosto de 2015.

[10] Cornélio era um “homem reto e temente a Deus” antes mesmo de ouvir a mensagem evangélica de Pedro (10.22).

[11] BUSWELL apud GEISLER, 2001, p. 46.